Mecânica #17: Variable Setup

Algumas mecânicas atrás (#11, #12, #13, #14) eu “cunhei” um termo chamado mecânicas acessórias. Basicamente são mecânicas que você pode inserir facilmente no seu jogo sem mudar a essência do mesmo. Mas pra que isso? Experimentar, aprender usando, ver como as coisas interagem e funcionam e, quiçá, deixar seu jogo melhor? Então, voltei para mais uma dessas. Simbora?

Antes de começar, vamos definir a mecânica. Variable Setup, como o próprio nome diz, é quando o jogo implementa variações na preparação do jogo. Isto é, antes de iniciar a partida, existem elementos que são selecionados aleatoriamente (ou a gosto) que irão ter algum impacto, costumeiramente grande, na partida que irá iniciar. É isso. Bem óbvio.

A parte do costumeiramente grande não é lá muito definição, botei já que ao pensar nessa mecânica imagino objetivos diferentes que vão dar pontos, então são bem impactantes na partida, ou mapas diferentes, especialmente em jogos que o mapa é bem importante. Sendo que não é só disso que vive Variable Setup. Pequenas variações também contam.

Apenas para manter a tradição, devo citar que o jogo mais antigo listado no BGG é um tal de Ein Altes Kriegsspiel (1858). Bem velho. Claramente um War Game e, como a maioria dos War Games, você joga partidas em diferentes cenários. Então, perceba que a mecânica não tem nada muito inovador não, é um negócio bem manjado usado desde os primórdios. Entretanto, não é por ser velharia que não serve de nada. Eu que o diga sobre mim mesmo. E também não é por ser velharia que não é possível inovar. Então, quais os aspectos positivos dessa mecânica?

  • Rejogabilidade: essa é a maior bandeira do Variable Setup. Se você tem cenários diferentes, mapas diferentes, objetivos diferentes ou seja lá o que for diferente com relativo impacto na partida, você consegue incrementar a rejogabilidade. As pessoas terão um motivo para retornar ao seu jogo, pois querem conhecer as outras opções.
  • Dificuldade: você pode aproveitar dessa variação para criar níveis de dificuldades distintos, seja em jogos cooperativos ou competitivos mesmo. Como assim? Em jogos cooperativos é bem óbvio, basta deixar mais difícil para os jogadores precisarem jogar melhor para vencer o jogo. Já em jogos competitivos, você pode montar configurações que facilitem a entrada dos novos jogadores por ser uma configuração com estratégias mais óbvias ou por ser uma configuração mais justa para todos. Assim como você pode ter maneiras de deixar o jogo mais complexo/difícil para os jogadores mais experientes.
  • Personalização: se você pode mudar como o jogo começa, é possível personalizá-lo o máximo possível. Afinal, você não é obrigado a fazer aleatório, mesmo que o jogo diga para tal. Você pode escolher os objetivos que acha mais divertido ou as facções que acha mais interessantes ou o mapa que seu grupo acha mais bacanudo.

No final das contas, o ponto forte é realmente a rejogabilidade. Entretanto, é preciso ter algum cuidado para não cair nas armadilhas…

  • Fake Replayability: algumas pessoas alegam que alguns jogos colocam essa variedade mas que no final das contas a partida continua com o mesmo fluxo/sentimento/jogabilidade. Logo, apenas variedade sem muito impacto foi adicionada ao jogo. Terminou que perdeu tempo o Game Designer bolando variações e você testando variações, mas que no final dá tudo no mesmo. Cuidado.
  • Excesso: às vezes o jogo exagera nas opções e o tiro sai pela culatra. Tudo bem que conteúdo é sempre interessante, mas de que adianta um jogo ter cinquenta cenários se depois de cinco cenários você já se cansou? Seja por serem parecidos demais ou por alguns serem bem chatos? Selecione os melhores, não caia nessa. Qualidade é melhor que quantidade aqui.
  • Desbalanceamento: quanto mais conteúdo é inserido à um jogo, mais esforço será necessário para balancear. Que adianta você ter trinta facções se quando você faz uma disputa entre duas delas é impossível vencer com uma das duas? Ou pior, quando uma facção é muito melhor que qualquer outra?

Mas como faço para evitar as armadilhas? É só tá ligado. Não? Bom, vejamos alguns exemplos… Talvez ajuda a clarear as ideias.

Tanto os tiles como os meeples são aleatórios no começo da partida: um duplo Variable Setup?

Se você pensar um pouquinho, vai ver que essa mecânica tem algumas possibilidades de implementação. Cada possibilidade dessa é meio que conectada à alguma outra mecânica. Talvez o que eu esteja falando agora não faça sentido mas daqui a pouco vai fazer. Então, eu vou meio que aglomerar os exemplos nessas possibilidades. Vamos começar por um clássico: Catan (1995). Você consegue adivinhar a mecânica aqui? É tabuleiro modular. Vamos ser ainda mais específicos: quantos jogos não usam tiles (nos mais variados formatos) para compor um tabuleiro e isso é feito aleatoriamente? Uma reca… Catan é um deles. Temos também Yokohama (2016), Five Tribes (2014), Istanbul (2014), Kingdom Builder (2011), Twilight Imperium IV (2017), e eu poderia citar mais uma reca. O propósito aqui é permitir que o jogo tenha a possibilidade de uma exploração distinta. Assim, o jogador não pode usar a mesma estratégia sempre. Alguns jogos isso acontece de uma maneira mais forte, como os que a movimentação entre os tiles é algo extremamente relevante (Yokohama e Istanbul), enquanto que outros é algo mais leve já que a estratégia do jogo não é tão focada no mapa (Twilight Imperium). Alguns aqui tem a mecânica funcionando em mais de um aspecto. Em Five Tribes, além do mapa, existe os meeples coloridos distribuídos aleatoriamente, por exemplo. É relativamente comum um jogo ter várias variações variando. Sim, escrevi de propósito.

Reca de personagens em Marco Polo.

A outra possibilidade é com poderes assimétricos. Cosmic Encounter (2008) tem um alto impacto na partida dependendo dos poderes, pois isso vai ditar as alianças e grande parte da dinâmica de negociação da partida. Twilight Imperium aparece aqui novamente, já que cada raça tem uma maneira de jogar que se beneficia mais pela assimetria. Gaia Project (2017) e Terra Mystica (2012) também estão por aqui de mãozinhas dadas. Root (2018) que tem uma assimetria bem forte, mas como não tem tantas facções eu diria que a variedade da partida não é muito grande, mas a experiência para o jogador é. E no final das contas é isso que mais importa. É bem diferente a experiência de jogar com cada facção e isso é mais interessante do que ter cinquenta para escolher e, no final das contas, a experiência ser bem similar e só mudando um pouco seu foco no jogo. Eu diria que esse é o caso da maioria dos jogos da Tasty Minstrel Games. Não é um ataque à Editora, mas uma realidade. Quase todo jogo deles, eles proporcionam um lado genérico de tabuleiro de jogador e um outro assimétrico. O lado assimétrico é, essencialmente, uma possibilidade estratégica do jogo. Então, serviu apenas de ponto focal. Não é ruim, pois realmente faz o jogador ter aquela vontade de voltar e jogar com um tabuleiro diferente, mas é algo falso. Ele poderia conseguir essa mesma experiência ao, simplesmente, investir em estratégias distintas. Marco Polo (2015) é mais um bom exemplo com essa variedade. Spirit Island (2017) e Scythe (2016) são mais alguns que entram no embalo. Architects of the West Kingdom (2018) os jogadores iniciam com recursos diferentes e também com alguma habilidade, se não quiserem jogar com o lado básico do tabuleiro de jogador. Já citei que não sou fã dessa assimetria, mas bom, é um exemplo.

Toda partida são quatro objetivos, possibilidades bem amplas, especialmente pela pontuação ser combinações dos mesmos (AB, BC, CD e DA).

Sim, as possibilidades não acabaram, ainda tem os jogos que ficam variando os objetivos. Acho que esse é a parte da mecânica mais recentemente utilizada. Isle of Skye (2015) usou de um jeito que me pareceu bem inteligente, você tem 4 objetivos e eles intercalam o momento de pontuação durante toda a partida. Cartographers (2019) copiou na cara dura a ideia, mas é assim mesmo: boas ideias precisam ser re-utilizadas. Fora que acho Cartographers um jogo melhor. Em Isle of Skye os objetivos diferentes estão lá, mas eles não mudam muito as estratégias ou como você procede no jogo, só meio que muda os tiles que você vai investir e, claro, muda o foco da disputa para esses tiles. Gaia Project e Terra Mystica também fazem parte dessa possibilidade. No início da partida você coloca meio que uns objetivos de rodada. Ninguém precisa fazer, mas ganha uns pontos extras fazendo. Isso é bom que dá um norte aos jogadores, especialmente para os que estão jogando pela primeira vez não ficarem tão perdidos no que fazer. Em Ticket to Ride (2004),  Strasbourg (2011),  Troyes (2010) também tem objetivos, mas não são expostos na mesa, são secretos e pertencem aos jogadores.

Mapa altamente personalizável com terrenos e tropas, possibilitando cenários finitos (não dá pra ser infinitos, meu filho).

Por fim, ou não, temos também os jogos que variam o mapa como um todo ou possuem cenários. Ticket to Ride é um exemplo gigante desse, problema é que cada mapa é um jogo diferente. Então, eu não diria que é uma implementação da mecânica, né? Já Memoir ’44 (2004) é um bom exemplo, assim como vários War Games. É muito comum todos eles possuírem cenários distintos. A maioria dos jogos com mapa ou são novas versão Standalone ou expansões, então acho que pecam um pouco na implementação da mecânica em si, vide Concordia (2013), Power Grid (2004) ou Hansa Teutonica (2009).

Um exemplo mais diferente é Dominion (2008), que por ser um Deck Building, nem toda carta entra na partida, dando alguma variedade. Isso muda a economia do jogo, pois certas combinações de cartas podem ser mais for ou mais fracas dependendo do que está na mesa. Temos também Specter Ops (2015) como um exemplo mais diferente e não diria que tão interessante. Nele, o jogador que está sendo perseguido escolhe umas cartas de equipamento no começo da partida. Parece legal, né? O problema é que nem todos os jogadores sabem todas as cartas existentes no jogo e isso facilita a vida do perseguido. Especialmente em mesas de novatos. Esse mesmo problema ocorre com os jogos de objetivo secreto, mas aqui o impacto é muito maior, pois Specter Ops é um jogo de interação direta e que é muito importante saber todas as cartas de equipamentos que existem para poder lhe ajudar na dedução durante a partida. Diferentemente de um Euro Game que você pode até ficar sem saber e focar na sua estratégia.

Às vezes o Variable Setup pode ser bem simples, como em Blue Lagoon (2018), que é basicamente colocar os recursos nos espaços de modo aleatório. Ou a definição aleatória das plantações iniciais em Puerto Rico (2002). Ufa… Já deu de exemplo, né?

Recursos aleatórios em Blue Lagoon. Tabuleiro bem vazio, mas vai encher durante a partida com as peças dos jogadores.

Se você for observar, os jogos citados aqui são todos muito diferentes. Demonstrando que a mecânica é realmente vasta e com muitas maneiras de implementar. Então, a pergunta final é: como botar no meu jogo? Bicho, é a mecânica mais de boas para inserir. Acho que quase todos os meus jogos possuem.

Regicida (2020) tem um objetivo por partida de quatro possíveis. Distrito 6 (2022) tem um esquema de pontuação bônus por rodada, tal qual Terra Mystica; e também tem objetos secretos e públicos definidos no começo da partida. O meu Teotihuacã, agora em sua nova versão Henutsen, também possuem objetivos que são ativados no decorrer da partida. Alien Alarm também inicia cada rodada com o desafio pré-estabelecido e variando isso irá mudar o quebra-cabeça que o jogador irá lidar. Em Alters existe uma definição inicial por Draft das habilidades e das cartas de mancha que vão definir o restante das decisões dos jogadores. Acho que Variable Setup é algo intrinsecamente presente nos jogos de tabuleiro mais recentes, pois garantem alguma rejogabilidade de uma maneira relativamente simples (cuidado com as armadilhas!) já que agora os jogos estão com o tempo de vida cada vez mais curto. São tantos lançamentos que é necessário que os jogos possuam algo que faça o jogador retornar, ou… Estará fadado a ser jogado apenas uma vez.

É isso, sem muitas dicas por hoje, é mais: faça algo similar ao que já existe para ir aprendendo e verá que os resultados são interessantes.

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