Lição #41: Vencer deve ser divertido e fazer sentido

Hoje a Lição é dupla. Pensei em segmentar, mas não vamos ser pirangueiros. Na realidade, pensei nas duas em momentos distintos, mas ao iniciar esse texto achei que seria mais interessante juntá-las. Mais um vez, fui inspirado por jogos já publicados e que não são de minha autoria. Como já disse, não é meu estilo predileto, mas precisamos alimentar as crianças, né? Digo, alimentar o blog. No final das contas, resultando em algo que transmita conhecimento e poupe alguns perrengues, acho que vale a pena escrever, independente da origem. Então, vamos falar sobre vitória?

Vencer ou perder faz parte de todo jogo. Talvez alguns discutam esse princípio, podendo existir jogos apenas pelo prazer de jogar e eu concordo. Entretanto, de modo geral, a ideia por trás de todo jogo é ter vencedores e perdedores. Sejam um, dois, três, todos ou até nenhum. Sendo assim, vencer e perder são aspectos cruciais na criação de um jogo e por isso essa lição é tão importante.

Vou começar falando da minha inspiração: Journey to the Center of the Earth. Não estou falando do livro de Jules Verne ou sequer do filme com Brendan Fraser, estou falando do jogo de tabuleiro. Sim, existe um jogo de tabuleiro baseado no livro, foi criado pelo Rüdiger Dorn. Talvez esse nome não lhe seja estranho, pois o camarada criou alguns jogos lançados aqui no Brasil como Karuba e Istanbul, fora outros sucessos como Las Vegas, Goa e o recente Luxor. Então, não estamos falando de um qualquer aqui não. Pois bem, tive a oportunidade de conhecer Journey to the Center of the Earth (vamos chamar só de Journey a partir de agora?) recentemente, inclusive ele estará no Desafio 100N desse mês. Então, se você acompanha o Desafio, lá vem spoiler.

Journey to the Center of the Earth, belíssimo jogo para toda a família.

Journey é um jogo simples e familiar que me proporcionou uma partida bastante agradável. Apesar de alguns pequenos problemas de balanceamento e excesso de sorte, nada disso me incomodou muito. O que me incomodou é o fato de que o jogo é sobre coletar fósseis e é possível vencer a partida tendo zero fósseis no final do jogo. Ué, Roberto, como isso é possível? Bom, não vou explicar todo o jogo para não me prender a detalhes, mas resumidamente você recebe pontos por fósseis e por alguns outros aspectos: ser o primeiro a levar um personagem para uma fronteira (são duas fronteiras na partida) e também pontos por cartas de eventos. Na partida que eu joguei eu coletei bastante fósseis, acredito que eu tinha pelo menos o dobro se comparado com qualquer outro jogador. Claramente a vitória era minha, correto? Errado. Eu empatei com um jogador que tinha zero fósseis, pois todos os pontos que deveriam ser “complementos” da pontuação (chegar nas fronteiras e cartas de evento) deram a ele a mesma quantidade de pontos que eu. Eu venci no critério de desempate que era ter mais cartas de fóssil. Pelo menos o critério de desempate fez sentido dentro do jogo.

Talvez você leia isso e pense: “ah, mas é legal que o jogo permita que um jogador tenha chances de vencer de uma maneira diferente, isso é o que chama vários caminhos para a vitória, né?”. Eu concordaria, se o jogo fosse um jogo com essa pegada. Entretanto, Journey é um jogo com foco bastante definido: somos exploradores conseguindo fósseis. Não faz sentido uma pessoa com zero fósseis sequer ter a chance de vencer ou empatar pelo primeiro lugar. É como chegar no final da uma partida de Ticket to Ride e o jogador vencer sem ter colocado nenhum trem no tabuleiro. Ou o vencedor de Terra Mystica ser o jogador que nunca colocou uma nova construção no tabuleiro. Ou o vencedor de Rising Sun nunca ter batalhado uma vez na partida. Bom, eu poderia passar a tarde criando absurdos de vitórias mas acho que já me fiz entender.

Portanto, se seu jogo tiver um determinado escopo e enfoque, mantenha-os verdadeiros e com impactos reais na partida. Distrito 6 é um jogo de construção de cidade, se você não construir seus dados na cidade não conseguirá vencer a partida de jeito nenhum. Existem outras maneiras de pontuar Distrito 6? Sim, mas elas são diretamente conectadas ao enfoque do jogo. É até bem fácil encontrar exemplos funcionais até mesmo em jogos que são salada de pontos. Castles of Burgundy é uma salada de pontos, mas se você não construir sua região, não vai conseguir vencer a partida. Teotihuacã você ganha/perde pontos de 9 maneiras diferentes, e apesar de todas elas não estarem vinculadas diretamente ao desenvolvimento da sua pirâmide, é impossível vencer a partida focando apenas nas “alternativas” ou sequer chegar próximo de vencer. Claro que nem só de feitos positivos vive um Game Designer. Uma das versão do Ciberguerrilha tinha um sistema de pontuação não tão interessante, no qual era bem provável um jogador que não construiu um robô completo vencer de alguém que fez um robô completo. Em termos temáticos não faz sentido, porque o meu robô completo é pior do que aquele robô sem perna?

Sendo que não basta encerrar a partida e o vitorioso ter sentido. É importante também, que o vitorioso tenha se divertido jogando, seguindo sua estratégia que permitiu a sua vitória. Esse não é o problema de Journey. Na verdade, existiram vários momentos de frustração na aquisição dos fósseis durante a partida, mas isso é um problema de sorte excessiva do jogo e não de que as ações rumo ao objetivo sejam chatas ou entediantes. A questão aqui é que alguns jogos colocam a vitória na frente da diversão e isso é um outro erro. Isso pode ser comum em jogos com múltiplos caminhos para vitória, especialmente jogos Sandbox. Não adianta seu jogo ter vários caminhos para a vitória, se alguns deles forem sem graça, é um desserviço ao jogo. Sabe quem vai seguir essas estratégias entediantes? A pessoa que é competitiva demais e quer apenas vencer ou o curioso, geralmente aspirante à Game Designer, que quer dar uma olhadinha em como funciona essa ou aquela estratégia.

Os barcos do Merchants & Marauders, sendo o da esquerda negligenciado por 99% dos jogadores e o da direita adquirido por 99% dos jogadores.

Existem muitos exemplos para ilustrar essa situação. Pense no Merchants & Marauders, no qual é muito mais divertido jogar como pirata, mas é muito mais fácil vencer sendo um entediante mercador. Deste modo, o jogo te força a seguir uma estratégia não tão divertida em prol da vitória, o que não é benéfico ao jogador e até afasta-o do jogo. Eu, por exemplo, vendi meu M&M, pois cansei de me ver obrigado a fazer a mesma estratégia toda a partida. O jogo me fazia escolher entre me “divertir” e perder ou ficar entediado e vencer. O divertir ficou entre aspas, pois no final das contas, como é muito difícil ser pirata, você termina até mais se frustrando do que se divertindo. Outro exemplo é o Russian Railroads, que é muito mais legal criar combos com as industrias do que simplesmente focar na linha do meio para conseguir o trilho branco. O caso aqui é menos grave, pois é possível vencer de várias maneiras no Russian Railroads, mas claramente a estratégia dos trilhos é a mais sem graça. Outro jogo é Um Banquete à Odin, jogo-monstro do Uwe Rosenberg, joguei apenas uma vez mas arrisco dizer que a parte mais divertida é montar os quebra-cabeças, sendo que você pode vencer ignorando essa parte (não é possível ignorar por completo, mas você pode deixar para apenas cobrir os espaços negativos) e focando em outros aspectos que são mais sem graça, mas dão mais pontos. Bom, os exemplos são diversos.

Com isso em mente, fica o questionamento: como evitar fazer isso nos meus jogos? Resista à tentação de crescer seu jogo para abrir esse leque de múltiplas estratégias. Não vale a pena elaborar estratégias que ninguém irá seguir ou que sequestram a diversão que você queria proporcionar aos jogadores. Prefira simplificar e focar. Jogos criados dessa maneira possuem um aspecto mais natural e propiciam experiencias agradáveis sempre. Ou simplesmente não agradam de imediato, geralmente por questão de gosto, e você evita jogá-lo. Jogos com múltiplos caminhos para a vitória são interessantes do ponto de vista da rejogabilidade, mas não é apenas disso que vive a rejogabilidade. Rejogabilidade é uma criatura mítica e deve ser procurada com certo cuidado ou você terminará se tornando refém dela. Por sinal, talvez mais um tópico para o futuro, não é? Por hoje é só.

6 Comments

  1. Cássio Nandi Citadin
    29 de março de 2019

    Fala Roberto, tudo bem?

    Meditação forte a de hoje. Você tocou nos exemplos de jogos com estratégias pouco divertidas e que vencem e na hora me veio em mente o Great Western Trail com a estratégia vencedora de aquisição de cartas de Gado. Essa forma de jogar é a mais simples, inclusive recomendada pro jogador iniciante perseguir, e é de longe a menos divertida. Acontece que ela é uma forma vencedora de jogar e os amigos competitivos acabam abusando dela, enquanto eu que sou mais admirador do design do que qualquer coisa tento sempre inovar e me dou mal.

    Um jogo que tem isso ao contrário é Terraforming Mars, onde existe a forma mais direta de jogar, competindo por diversos premios e fazendo o jogo andar e o deixando mais curto (sabemos que ele é um jogo longuissimo). Existe a forma de jogar com engine de pontos (cartas azuis). Isso deixa o jogo fiddly com a manipulação de dezenas de marcadores, e o jogador que monta esse combo quer segurar o jogo, então além de ser menos divertida atrapalha a experiencia dos outros estendendo a partida infinitamente.

    Recentemente joguei Gugong, vc já jogou? Tem uma peculiaridade engraçada no jogo que é a trilha do Governador/Presidente/Rei/Imperador. Se faz sentido tematicamente não sei, mas caso vc não chegue ao final dela vc nem pode participar da pontuação final. Achei um detalhe polemico, mas chamativo.

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    1. Roberto
      29 de março de 2019

      Fala Cássio, negócio hoje foi filosofal quase hehehe =D

      Então, é aquela.. A gente que é curioso, às vezes tenta umas estratégias nada a ver e se ferra. Isso, por si só não é mal. Eu, pelo menos, gosto de testar algo e não me incomodo em perder, faz parte da descoberta.
      O chato é uma estratégia simples sempre propiciar a vitória… Entra naquela questão de balanceamento. Nem sempre balanceamento perfeito é bom, pois é importante levar a habilidade necessária em consideração. Isto é, não tem problema um determinado jogo ter uma estratégia mais poderosa, desde que ela seja mais complicada de executar. Talvez esse seja o problema do GWT: ser muito balanceado e com uma estratégia meio “obvia”.

      TMars eu só joguei uma vez e fui nas cartinhas só, praticamente ignorei o tabuleiro. Foi uma experiência estranha também, venci sem colocar nada no tabuleiro quase (só fiz colocar no finalzinho, para agilizar o final da partida e evitar os oponentes de juntarem mais pontos).

      Não joguei Gugong ainda, esse esquema de “eliminação de jogador” no final da partida é meio tenso. Eu joguei uns jogos com isso, mas acho que a ideia era diferente do Gugong. São jogos que você tem algum elemento secreto que você coleta durante o jogo e no final da partida o jogador que tiver mais/menos já perde. Eu não sou particularmente fã, pois insere memória em um aspecto crucial do jogo. Pelo que entendi do Gugong é diferente, não há competição (você deve chegar, mas não ser o maior ou menor) e é aberto (todo mundo sabe o que tá acontecendo). Então, talvez me agrade mais… Mas realmente, é algo polêmico e arriscado hehehe A vantagem é que isso força você a seguir o “escopo” do jogo, a desvantagem é que isso não deveria ser forçado, mas simplesmente natural. Bom, só jogando pra ver. hehehe

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      1. Cássio Nandi Citadin
        29 de março de 2019

        Sobre o GWT, a excelente expansão Rails to the North “nerfou” por assim dizer a estratégia de compra de gados, que agora é apenas uma forma de pontuar e melhorar o baralho, e não a forma mais eficiente de fazer pontos. Não diria que corrigiu algo, mas para um metagame como o meu que estava cansado da estratégia dos gados, ela caiu muito bem.

        Justamente, como vc analisou sobre o Gugong, alguns consideram ele um jogo “scriptado” com algumas ações claramente mais benéficas que outras.

        Vou deixar uma sugestão semi-offtopic pra vc. Um top 5/10 de jogos Dudes on a Map.

        Responder
        1. Roberto
          29 de março de 2019

          Hm… Pode ser uma boa ideia, até para expandir para mecânicas e tals. Problema é onde começa e onde termina a definição de Dudes on a Map. Veremos… =)

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  2. Fred Barcelos
    29 de março de 2019

    Putz, discordo em relação ao Merchants and Marauders citado no post, e pra variar, discordo do primeiro comentário sobre great Western Trail. Alias estou me preparando pra jogar Merchants and Marauders agora (sério mesmo) e Great Western Trail é, de longe o jogo mais jogado aqui em casa (o bloquinho de pontuação já acabou faz tempo).

    Concordo com a ideia central do post, só não aconteceu comigo de identificar um jogo com esse problema, aliás o que já vi foi jogadores acharem que ele existe quando na verdade o que existe é um caminho mais “simples” e direto, enquanto o outro é mais “exigente”, por exemplo, focar em vaqueiros no Great Western Trail, fazer apenas contratos e não viajar em As Viagens de Marco Polo, e essa situação tá longe de ser um problema de design (muito pelo contrário).

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    1. Roberto
      29 de março de 2019

      Opa Fred, valeu pelo comentário. E taí uma das razões pela qual evito usar exemplos de jogos em Lições hehehehe Haverão discordâncias com os exemplos dados.

      Sobre GWT eu realmente não posso afirmar muita coisa, joguei pouco. Concordo que não é problema de design um jogo ter vários caminhos para a vitória quando é um jogo com essa proposta (vide GWT). O problema dele (se existir, pois não sei se existe) é todos os caminhos serem balanceado demais, sendo assim o melhor caminho a seguir é o mais simples de fazer. Que segundo o Cassio é comprar vacas. Mas aí é questão de outra postagem do que essa daqui (sobre balanceamento).

      Sobre o M&M você discorda que é mais fácil ganhar de mercador do que de pirata? Ou discorda que não é divertido jogar como mercador? Se for sobre a diversão, aí não tem como chegarmos em um consenso mesmo, pois varia de pessoa para pessoa. Agora se for sobre o desbalanceamento, certeza eu nunca terei e também não irei fazer as contas, mas todas as partidas que joguei, nenhum jogador venceu o jogo sendo a partida inteira um Pirata, enquanto que sendo a partida inteira Mercador sempre foi viável (e muitas vezes garantia a vitória). E de todas as partidas que joguei, só os novatos escolhiam o barco inicial como sendo o pirata e sempre se davam mal. Os veteranos não faziam o mesmo, pois já tinham percebido o quão mais fácil era começar com o mercador, ganhar uns pontos/dinheiro e trocar por um barco melhor e (aí sim) seguir a estratégia de pirata ou mercador (e geralmente usando o Galeão, mesmo sendo Pirata). Eu já peguei a Fragata para seguir com a estratégia pirata e já venci assim, mas ele fica recluso à atacar NPCs mais fracos e fazer Raids, sendo excelente para esse segundo caso. Entretanto, o Galeão é tão forte, que até os jogadores mercadores serão uma ameaça para o jogador pirata. O que não faz sentido e só ocorre porque o Galeão é overpower. Desde então, tem sido sempre muito mais fácil vencer usando Galeão, que além de ser excelente para destruir outros barcos ainda lhe permite ganhar uns pontinhos fáceis levando produtos.

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