Lição #35: Texto ou iconografia?

O título original dessa Lição era: “texto é melhor que iconografia”, mas todos sabemos que isso não é verdade. Seria só um título impactante que seria explicado nos detalhes da postagem. Sendo assim, optei por um título mais próximo a realidade, pois a questão não é se texto é melhor que iconografia. A questão é, quando devo usar cada um deles?

Quem não gostaria de ter apenas uma versão do seu jogo? Totalmente com iconografias, sem barreiras de linguagem e, com isso, publicá-lo em todo mundo? Parece excelente, não é? Traduzir apenas o manual e manter todos os outros componentes intactos. Entretanto, nem todo jogo possui essa viabilidade iconográfica. Isto é, nem todo jogo tem um sistema tão bem definido e restrito que possa ser representado por ícones.

Vamos começar, como quase sempre, usando meus jogos como exemplo. Mataru Okara é um jogo de destreza com muitos elementos diferentes. Apesar do jogo ser composto quase que inteiramente por cartas, não existe apenas um tipo de carta. Na realidade, são cinco tipos diferentes (Cartas de Amuleto, Cartas de Ataque, Cartas de Condição, Cartas de Chakras e Carta de Referência). Com exceção das Cartas de Chakras, que poderiam ser substituídos por marcadores, todas as outras possuem texto. Talvez você se pergunte: mas Roberto, porque você não fez tudo com ícones? Amigo, não dá. Veja as fotos abaixo.

Três tipos de cartas de Mataru Okara: Carta de Amuleto, possui condição de uso, habilidade especial e efeito pós-uso; Carta de Ataque, possui várias opções de ataques com diversos efeitos; Cartas de Condição, possui efeito da condição e efeito pós-falha.

Na realidade até que é possível remover o texto. Entretanto, quantos ícones eu precisaria criar? Quanto mais ícones, mais complicado ficaria e como é um jogo leve, não vi sentido em complicar com ícones. Sem muito sentido, um jogo dessa complexidade, precisar de consultas constantes ao manual para compreender alguma habilidade. Além do mais, ícone é gráfico e como já sabemos, não devemos perder tempo com isso. Para completar, iconografia é algo bastante subjetivo e aberto a interpretações. A chance de uma iconografia dar errado é grande.

Vejamos um caso do Distrito 6, um Eurogame. Não é incomum vermos Eurogames completamente independentes de idioma. Esse é um estilo bastante propenso ao uso de iconografia, pois em geral existe uma certa uniformidade nos elementos do jogo. Como assim? Bom, os elementos são bem estabelecidos e, a maioria deles, possuem representação real. Por exemplo, um recurso é representado por um cubo, um trabalhador por um meeple, e assim por diante. Enquanto que em um jogo de cartas, o recurso talvez esteja na própria carta, misturado com outros tantos elementos (ilustração da carta, poder da carta, nome da carta, etc). O fato de existir uma representação física e palpável de certos elementos, facilita a iconografia.

Pois bem, Distrito 6 é um jogo de alocação de dados. Um dos espaços de alocação permite o jogador realizar trocas de recursos no seu tabuleiro pessoal. Como os recursos são representados por cubos e o tipo de recurso é indicado pela bacia que ele se encontra no seu tabuleiro pessoal. Ao realizar trocas, você simplesmente move os cubos de uma bacia para outra. Qual foi a primeira iconografia pensei em usar?

Primeira versão (esquerda) eu queria dizer: descarte um cubo e receba um cubo. A iconografia se repete duas vezes, pois o jogador podia fazer a ação até duas vezes. Segunda versão (direita), modifiquei para uma representação igual ao Tabuleiro Pessoal e a seta para indicar “movimento” dos cubos e o x3 para indicar que poderia ser realizado até três vezes.

Vendo agora eu percebo o quão complicado estava a iconografia, mas na época me parecia obvio que a iconografia estava fácil. Essa é a desvantagem da iconografia: ela precisa ser testada. Claro, texto também precisa ser testado, mas é menos complexo. Qualquer iconografia que os jogadores tiverem dúvidas, você precisa ajustar. Mesmo que seja apenas um jogador da mesa, se na sua pequena amostragem de jogadores já deu problema, imagine quando o jogo chegar no mercado?

Saindo um pouco dos meus jogos e indo para jogos publicados. Algo, facilmente observável, é a presença de iconografia em jogos que possuam uma presença forte da mecânica Tile Placement. Como o espaço de um tile é bastante reduzido, é comum esses jogos serem todos representados por desenhos e ícones. Não falo de jogos como Carcassonne, pois este nunca precisaria de texto para ser compreendido. Um jogo como Castles of Burgundy, possui vários tiles que liberam certas habilidades especiais aos jogadores, mas não é possível escrever a habilidade nos minúsculos tiles. Então, tudo é iconográfico e o jogo possui uma referência gigante no manual, detalhando cada um dos tiles do jogo. Em muitos momentos, essa iconografia não faz sentido a priori, mas depois de lermos a habilidade dificilmente esquecemos sua função. Então, apesar da iconografia não ser a opção ótima, é a opção viável e, por isso, deve ser utilizada.

Para fechar, vou concluir com mais um exemplo de jogo já publicado. Na verdade, esse exemplo é uma excelente lição por si só. Muitos de vocês devem conhecer o Game Designer polonês Ignacy Trzewiczek. Ele criou jogos como Robinson Crusoe, Imperial Settlers, Stronghold e, o jogo que comentarei hoje, 51st State. Para quem não conhece a história do 51st State, ela é no mínimo interessante. O jogo original foi lançado em 2010 e era totalmente iconográfico. As cartas não tinham uma palavra, tirando o título. No ano seguinte, foi lançado a expansão/stand alone The New Era. Sabe aquele estilo de jogo que é bastante difícil de aprender e possui um público bem especifico que ama o jogo? Esse era o perfil de 51st State/The New Era. Por qual razão acontecia isso? Iconografia. Essa danada era inviável de compreender em certos casos. Além, claro, do livro de regras que não ajudava muito. Na realidade, até os dias de hoje os manuais da Portal Games são terríveis (o último que tive que aprender foi o Cry Havoc e achei bem ruim). Pois bem, chegamos em 2014 e foi lançado o Imperial Settlers. Imperial Settlers é como se fosse 51st State versão família, com um diferencial importante: toda a iconografia das habilidades especiais foi convertida para texto. A iconografia foi usada apenas para aspectos fixos e bem estabelecidos do jogo, como os recursos obtidos quando ataca a construção e os recursos necessários para construí-la. O jogo fez um sucesso tremendo. Claro que não foi apenas a conversão de ícones para texto que foi responsável por esse sucesso, mas tenha certeza de que se isso não tivesse sido feito o jogo teria atingido o mesmo sucesso do 51st State original: quase nenhum. O jogo ficou mais fácil de entender e jogar. Afinal, texto não dá margem a tantas interpretações quanto imagens e podem expor infinitas ideias sem dificuldade. Qual a razão disso? Usamos texto desde que aprendemos a escrever, mas a iconografia de um jogo aprendemos apenas naquele momento que pegamos o manual ou que fomos ensinados por alguém. Não se compara a experiência de minutos com a experiência de anos. Pois bem, depois do sucesso de Imperial Settlers e da “descoberta” da escrita, 51st State: Master Set (basicamente 51st State 2.0) foi lançado em 2016. Foi um processo de 6 anos para que um bom jogo conseguisse o alcance que merecia por conta de uma simples decisão: texto ou iconografia? Se achou interessante toda essa história, veja aqui um slideshare com o processo de evolução do design gráfico das cartas.

Então, é assim que encerro por hoje. Espero ter lhe deixado com as ferramentas necessárias para que você possa decidir qual caminho adotar para o seu jogo, pois é uma decisão que poderá fazer seu jogo deslanchar ou afundar.

2 Comments

  1. Matheus Ulisses Xenofonte
    19 de março de 2018

    Adorei o tema, eu estava quebrando a cabeça exatamente sobre isso a uns tempos atrás (uma vantagem que não foi comentada é que o word trava bem menos quando não tem um monte de imagem no arquivo).

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    1. Roberto
      19 de março de 2018

      Bote fé, eu tenho um outro jogo que as cartas estão no Word também e tem de 7 à 13 figuras por carta. O arquivo fica pesadão para abrir/editar e até no tamanho mesmo.

      Responder

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