Lição #38: Aleatoriedade é sua amiga

Já faz um tempo que existem alguns jogadores alérgicos à aleatoriedade, especialmente com relação aos dados (aqueles que jogamos, não a informação bruta). Alguns jogadores alegam que estragam um jogo, que perde o propósito ou até mesmo que acrescentam um fator sorte que não é bem vindo. Entretanto, o dado ou saque de cartas existem por alguma razão e tem suas funções. E, por incrível que pareça, é possível sim criar jogos estratégicos com o uso de dados. Inclusive, é possível criar jogos no qual a aleatoriedade presente não influencie no resultado da partida em termos de “sorte” ou “azar”. Duvida? Vamos lá…

Antes de começar, é importante conhecer os dois tipos de aleatoriedade: output randomness e input randomness. Não vejo uma tradução bacana para isso, mas talvez eu chamasse em português como aleatoriedade cega e aleatoriedade informada, respectivamente. A primeira é a aleatoriedade clássica e, geralmente, mal vista: você decide algo e só então você rola um dado ou saca uma carta que irá gerar um resultado sem chance de escolhas. Isto é, você toma a decisão antes e depois torce. A segunda, é a aleatoriedade usada mais em jogos estratégicos modernos, que é quando algo aleatório acontece e só depois você toma alguma decisão. Essa distinção é importante saber, especialmente para ter a ideia de que aleatoriedade não é sinônimo de sorte. Especialmente se for input randomness.

Summoner Wars, um jogo com output randomness nos dados e input randomness nas cartas. Um dos meus jogos favoritos.

Perceba que não vim aqui criticar a output randomness. Apenas alertar que existem os dois tipos e que ambos tem seus propósitos e razões de existir. Então, vamos deixar de conversa e citar alguns pontos que tornam a aleatoriedade uma decisão válida para o Game Designer e que, de fato, serve como uma ferramenta para o desenvolvimento de determinados jogos:

  1. Criar tensão. Nada cria mais medo do que o desconhecido. Aleatoriedade pode ser usada para este propósito de modo bastante efetivo. Você pode elaborar uma estratégia perfeita, mas quando chegou o momento de verificar se ela funcionou realmente, pode tudo ir para os ares. Obviamente, requer um bom balanceamento da aleatoriedade para não tornar o jogo em um festival de sorte. Inclusive, é necessário uma boa matemática e uns bons Playtests para criar tensão sem que exista tanta frustração no processo.
  2. Aproximar os níveis. A aleatoriedade dificulta os cálculos e gera incertezas em um jogo. Com isso, fica mais difícil de um jogador experiente surrar um jogador novato. Dependendo do estilo de jogo, essa pode ser uma excelenteferramenta. Afinal, é meio chato o jogador iniciante não ter chance alguma contra um experiente em um jogo infantil ou um Gateway.
  3. Reduzir Analysis Paralysis. Já citei isso em uma resposta sobre o assunto. Relembrando: se você não tem certeza se algo dará certo ou errado, isto é, se nem tudo está sobre seu controle, fica mais fácil de tomar uma decisão. Afinal, depois é sempre possível reclamar da sorte. Enquanto que um jogo sem elementos aleatórios, toda a responsabilidade recai sobre você.
  4. Rejogabilidade. Você aumenta a variedade e, consequentemente, a rejogabilidade, sem adicionar um elemento de sorte no jogo (desconsiderando jogos assimétricos). Para isso, basta que seu jogo tenha uma preparação aleatória, isto é, elementos que são aleatórios antes da partida iniciar. Além disso, elementos aleatórios mesmo durante a partida aumentam a rejogabilidade, pois situações diferentes irão ocorrer com as mesmas ações.
  5. Árvore de decisão gigante. Em um jogo sem aleatoriedade, existe uma árvore de decisão fixa e “apenas” dependente das ações dos adversários. Em um jogo com aleatoriedade, existe um novo elemento que cria diversas possibilidades. Você precisará de um Plano B, isso abre um leque para jogadas arriscadas ou mais conservadoras de uma maneira muito mais clara do que um jogo de Xadrez, por exemplo.

Claro que aleatoriedade não é trivial de ser utilizada e claro que irá existir sorte em jogos com aleatoriedade. Dependendo do seu público, sorte por si só não é um problema. Na verdade pode até ser uma solução. Entretanto, vamos pensar do ponto de vista de jogadores experientes e interessados em um bom desafio de mentes. Sorte, pode sim, se tornar um problemão. Então, não deixe que a aleatoriedade tome conta do seu jogo. É um tanto quanto frustrante, depois de uma longa partida, você ter jogado muito melhor que seu oponente e perder pelo mero acaso do dado ou de uma carta.

Troyes, um jogo cheio de vários tipos de input randomness. Seja rolando dados para depois usá-los. Seja definindo as cartas da partida para depois usá-las. Seja recebendo objetivos no começo da partida para tentar alcançá-los. Um dos meus jogos favoritos.

Reduzir o impacto da sorte não é tão complicado quanto parece. Existem várias maneiras para mitigar a sorte de um jogo. Um uso bastante comum é existir um recurso que permita a manipulação dos dados. Outra maneira é aumentar a quantidade de cartas sacadas, assim a chance de vir algo interessante aumenta. Você também pode diminuir a importância da aleatoriedade. Por exemplo, é possível reduzir a importância de uma rolagem de dados, diminuindo seu impacto dentro do jogo. Isto é, o dado não precisa definir um combate, mas ser parte dele para definir algum aspecto. Entretanto, você não pode reduzir de tal modo que a sorte seja irrelevante, caso contrário é melhor não utilizá-la. Você também pode aumentar drasticamente a quantidade de incidências da aleatoriedade. Segundo a probabilidade, jogar vários dados é melhor (para reduzir o impacto da sorte) que jogar apenas um. Entretanto, eu discordo dessa aplicabilidade em jogos. Afinal, existem Momentos e momentos. Você rolar mal em um Momento é muito pior do que em um momento. Sim, a diferença é apenas no M maiúsculo. Um exemplo disso é qualquer jogo de combate. Se você rolou 10 dados para matar alguma criatura e ela tinha apenas 1 de vida, se você tirar apenas 1 acerto está tudo bem. Mesmo tendo errado nove. Enquanto que se você precisava tirar os 10 acertos e você errou simplesmente um, o impacto é muito maior. Apesar de ter errado apenas um. Logo, por mais rolagens que existam no seu jogo, não acho que inserir cada vez mais vá resolver o problema. Pode ser até justo do ponto de vista matemático, mas é injusto do ponto de vista de prioridades dos momentos e impacto da sorte. E como sabemos, balanceamento não é apenas matemática.

Assim, a sorte deve ser tratada com cautela e dependendo do público alvo. Em um jogo de baixa duração, muitas vezes aceitamos algumas mudanças drásticas causadas pela sorte. Afinal, foram apenas 20 minutos. Agora, um jogo de 4 horas ter vários pontos com influência de sorte, pode se tornar uma experiência frustrante para o jogador que não estiver indo bem naquele dia. Afinal, foram 4 horas sendo “injustiçado” pelos Deuses da Sorte. Não significa para evitar e proibir sorte em jogos longos, mas é importante que você crie maneiras de contornar o azar. Se você não conseguiu algo em um momento por conta da sorte, talvez consiga em outro. Ou talvez exista outras estratégias para perseguir, mesmo após fracassa naquela por conta da sorte.

Ao contrário do que muitas pessoas dizem, dado não é um problema ou solução fácil. Saque de cartas não é um problema ou solução fácil. Obviamente que ambos podem ser usados como uma solução fácil, mas depende do modo que você utiliza. Solução fácil é outra coisa (ver Lazy Design no Glossário). Garanto que muitas vezes, um jogo é melhor com dado do que sem dado. Pense nos Dice Placement. É uma variação do Worker Placement que funciona muito bem e tem vários adoradores mundo afora.

Todos os dados de Teotihuacã, nas 4 cores disponíveis: Amarelo representa dinheiro, Verde os trabalhadores, Cinza as construções e Azul conhecimento.

Para fechar, vou deixar um exemplo de um jogo meu: Teotihuacã. O jogo dos 80 dados. Teotihuacã é um jogo completamente centrado nos dados e eu digo que tem o mesmo nível de sorte do que Power Grid, por exemplo. A solução que eu cheguei foi simples. A ideia central do jogo é construir uma Pirâmide usando dados. Os dados, além da função de blocos na sua Pirâmide, também podem ser usados como ação. Os Pips dos dados, representam a quantidade de pontos de ação que você pode realizar com o dado, assim como a pontuação dele caso seja colocado na Pirâmide. Então, é um jogo que o valor do dado influencia bastante. A maneira que usei para mitigar foi usando a dinâmica do I Split, You Choose. É um Drafting, mas com muito mais decisão e tensão. Com isso, não importa se nos dados rolados tiveram 6 ou 1. O que importa é como o jogador da vez irá separar esses dados, para que cada jogador escolha um grupo e ele fique com o que sobrar. É um conceito extremamente simples, intuitivo e interessante que não teria muita graça sem as rolagens dos dados. E, apesar dos dados, a influência da sorte é mínima, ficando apenas o caos gerado pela escolha dos outros jogadores. Sendo que esse caos não é tão problemático, pois eventualmente você será o primeiro a escolher e poderá pegar o grupo que desejar. Então, assim como no Power Grid a sorte fica por conta da interação dos jogadores e da ordem de entrada dos dados no jogo (como a ordem das cartas de usinas em Power Grid). Deste modo, dá para perceber que Teotihuacã nem de longe parece o festival de sorte que muitas pessoas poderiam imaginar por conta da quantidade de dados.

Por hoje é só. Espero que eu eu tenha lhe empolgado a trabalhar um pouco mais com aleatoriedade. Até a próxima.

4 Comments

  1. Germano
    20 de agosto de 2018

    Mesmo com a explicação, não entendi o exemplo dos m(M)omentos

    Responder
    1. Roberto
      20 de agosto de 2018

      Fala Germano. Quanto mais se insere aleatoriedade, afirma-se que fica menos aleatório, pois a tendência é que as rolagens fiquem na média ao ver o todo. Eu quis dizer que discordo dessa solução, pois a aleatoriedade tem um peso diferente dependendo do momento… Se em um determinado momento você precisa tirar um 6 no dado, não tira e perde o jogo. Seria muito mais importante tirar esse 6 agora, do que em outros momentos menos importantes. Por isso que eu disse que não concordo que inserir uma quantidade maior de momentos definidos por aleatoriedade pode ser uma solução. Não sei se me fiz entender agora, ou se piorei a situação hehehehe. Abraço.

      Responder
  2. Lair Amaro dos Santos Faria
    31 de agosto de 2018

    Meu amigo, mais um artigo digno de aplausos. E que me deixou com um milhão de dúvidas.
    Sou historiador e professor e, como já te disse, adapto jogos para tornar minhas aulas mais prazerosas.
    Todavia, como historiador, sigo os passos de E.P. Thompson, um historiador britânico, que tinha como um de seus pilares a noção de que a História não seguia um curso predeterminado, mas vivia à merce da imprevisibilidade, pois os homens fazem a História, não como querem, mas com os instrumentos que podem usar. Em outras palavras, a aleatoriedade constituiria um fator central na evolução das sociedades.
    Tento levar isso para os jogos educativos. Mas após o seu belíssimo artigo, não sei mais o que faço. Parece-me que surgiu um conflito entre jogar por jogar e jogar para aprender História com base numa visão particular de História.

    Responder
    1. Roberto
      31 de agosto de 2018

      Obrigado pelo elogio, Lair.

      Então, nada impede que você utilize um jogo com bastante aleatoriedade para definir o curso das coisas. O que quis demonstrar com o artigo, foi simplesmente que existem maneiras de usar aleatoriedade sem ficar tanto a mercê da sorte. Mas nada impede de um jogo ser criado com alto fator sorte, se for com o propósito e público correto.

      RPG, por exemplo, é assim e rende um excelente caminho para aprendizado em sala de aula. Um amigo meu já aplicou e já escreveu sobre o assunto, se quiser dar uma olhada: http://www.rpgnaescola.com.br/

      Responder

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Scroll to top