Resposta #2: Aspirante a Game Designer (Parte 3)

Achou que a resposta tinha terminado na Parte 2? Achou errado, ot…coleguinha. Tendo em vista minha falta de conhecimento teórico sobre Game Design, resolvi convidar uma pessoa com formação na área para nos ajudar um pouco e também mostrar o outro lado da moeda. Eis, aqui nossa segunda convidada: Samanta Geraldini. Samanta é formada em Jogos Digitais mas trabalha diretamente com design de jogos de tabuleiro na Potato Cat, tendo publicado já dois jogos de sua autoria (Cartas a Vapor e Café Express) e com mais um já anunciado (New Eden Project). Então, temos alguém mais do que gabaritada para ajudá-lo na sua aspiração ao Game Design. Bem-vindo à semana especial com duas postagens do PinheiroGeraldini Responde.

Se você quer começar a criar jogos, existem 3 caminhos para você seguir:

  1. Estudar muito e saber tudo sobre teoria de jogos. Mas com isso você pode acabar se tornando um crítico, e não necessariamente um game designer;
  2. Partir para a prática e adquirir conhecimento através da experiência. Mas para aqueles que não têm sequer um norte por onde seguir, essa opção parece bem improdutiva;
  3. Trabalhar paralelamente com teoria e prática, seria o caminho que eu indicaria. Eu, como game designer por formação e profissão, acredito que minha jornada possa te ajudar, de alguma forma, a seguir esse terceiro caminho.

Separei minhas “dicas” em duas postagens. Hoje, na primeira postagem, vou falar um pouco sobre teoria. Assim, apresentarei termos relevantes para área e darei referências de onde você pesquisar para aprofundar esse estudo. Todo esse conteúdo pode ser útil para você antes mesmo de começar a criar um jogo. Vamos estudar um pouquinho, então?

No meu ponto de vista, estudar teoria de jogos é importante, pois é com ela que conseguimos fundamentar nossas escolhas e ter uma maior noção do porquê de algo estar ou não funcionando. Quando estamos criando algo, se não sabemos como as coisas funcionam e porque elas funcionam, acabamos trabalhando muito com “tentativa e erro”. Esse método também chega a resultados, mas não é o caminho mais curto e tampouco o mais efetivo.

Para facilitar sua vida, eu separei alguns conteúdos que considero relevantes para você estudar, ao menos um pouco, antes de começar seu primeiro jogo. Vou ressaltar aqui que muito desse conteúdo eu aprendi na faculdade de Jogos Digitais, portanto alguns textos são mais focados no digital mesmo. De toda forma, todo o conteúdo pode ser aproveitado, também, para jogos de mesa, pois boa parte da teoria se mantém.


Definição de Jogo

Você sabia que a definição de jogo, ainda hoje, divide opiniões? Você consegue distinguir qual a diferença entre jogo e brincadeira? Você sabe dizer se jogo é coisa “séria” ou se é “pura diversão”? Porque nós adultos jogamos? Jogo não é coisa de criança?

Se você quer criar board games, você precisa saber, antes de mais nada, o que é um board game, não é mesmo? Mas, mais antes ainda, você precisa saber o que é “jogo”, em seu significado mais primário. Os livros Homo Ludens e Man, Play and Games trazem 2 visões diferentes que abordam bastante o conceito de jogo e inclusive trazem algumas características importantes para um jogo fazer jus a esse nome.

Caso você não tenha tempo (ou paciência) para ler os livros, dê ao menos uma pesquisada rápida no amigo Google, acho que você vai gostar do assunto.


Monomito (Jornada do Herói)

Teoria que mostra as 12 etapas narrativas percorridas, como um ciclo, pelo protagonista de uma história. É uma espécie de “receita de bolo” que te ajuda a compor a progressão do jogo de forma mais lógica.

Essa teoria se aplica a filmes, livros e também a RPG e jogos, principalmente aqueles mais focados em storytelling ou sistema de campanha (como os jogos Legacy). Mas ela também pode ser abstraída e utilizada em qualquer tipo de jogo, para que você consiga permitir a evolução dos jogadores e dosar os desafios que eles enfrentarão.

Um exemplo de board game que utiliza alguns conceitos do Monomito de forma mais abstraída é o Great Western Trail. Apesar de abstrair os conceitos, ele acaba ficando intuitivo para você estudar isso, pois ele realmente é jogado de forma cíclica. Nele você inicia sua jornada no Texas e precisa fazer uma travessia, enfrentando desafios e ganhando recompensas menores, até chegar em Houston, onde você tem sua provação maior: a venda dos gados. Você ganha uma recompensa maior e retorna ao ponto inicial, mas dessa vez leva consigo mais conhecimento e também melhorias que você adquiriu durante o último ciclo da aventura.

No vídeo acima, você conseguirá entender um pouco melhor quais são as 12 etapas da Jornada do Herói. E sabendo isso garanto que seus jogos poderão explorar bem mais a narrativa e a progressão dos jogadores.


Teoria MDA (MechanicsDynamicsAesthetic)

Essa teoria divide o jogo em 3 pontos, que em português seriam Mecânicas, Dinâmicas e Estética. Ela é importante porque permite que você se coloque em dois ângulos diferentes: o do criador e o do jogador, e desfrute deles da melhor forma para tornar seu jogo realmente bom.

As mecânicas são as partes mais próximas do game designer (balanceamento, regras de limitação). As dinâmicas são o limiar entre a parte exclusiva do game designer e a do jogador (ações dos jogadores, regras no geral). E as estéticas são as reações causadas pelo jogo no jogador, algo um pouco fora do controle do game designer (experiência do jogo).

A teoria foca em jogos digitais, mas pode ser facilmente abstraída para jogos de tabuleiro. Você pode encontrar bastante conteúdo a respeito na internet, mas eu indico o artigo original, em inglês.


A teoria do flow demonstrada graficamente.

Teoria do Flow

O nome do criador da teoria, Mihaly Csikszentmihalyi, é tão impronunciável quanto o de Cthulhu, mas eu garanto que a teoria é bem mais simples e menos medonha!

O flow, ou fluxo, é um conceito utilizado em qualquer âmbito da vida (inclusive, o livro de Mihaly não tem NADA A VER com jogos), mas vejo-o sendo muito utilizado para entretenimento. Isso porque ele estuda o ponto exato de imersão do espectador. No nosso caso, o jogador.

Perceba que aqui não estou chamando de “imersão” algo com temática profunda, como acontece, por exemplo, em jogos da linha Lovecraft, que exigem “imersão” para serem mais divertidos, na maioria dos casos. A imersão aqui indica aquele ponto que o jogador se sente tão preso ao jogo que deixa de perceber tudo ao seu redor e se entrega totalmente à experiência.


Tipos de Jogadores e Tipos de Jogos

Quando você faz um jogo, é muito importante saber qual é o seu público. Seu jogo é competitivo ou cooperativo? Ele permite exploração? Tem muita interação?

Cada jogador possui características diferentes e buscam experiências diferentes nos jogos, e é bem interessante para você saber como projetar seu jogo para cada um desses tipos de jogadores. Existem inúmeros estudos sobre isso, e cada um classifica os jogadores à sua própria maneira. Eu não indico nenhum estudo em específico, pois acho mais válido conhecer o máximo que conseguir. Então bora acessar o amigo Google de novo pra entender mais sobre isso!

Outra parte importante para você acertar no público, é criar o “tipo de jogo” mais adequado. Existem vários tipos de jogos: familiares, infantis, estratégicos, temáticos, etc. Tente estudar um pouquinho sobre as “escolas de jogos”. Elas funcionam parecido com as escolas da Psicologia ou da Literatura: criam alguns padrões e direcionamentos. Nessas escolas nós temos os Eurogames, os Ameritrashes, os Party Games e alguns outros. Atualmente, vemos também muitos jogos híbridos, que bebem um pouco de cada fonte. O importante é saber sobre todas as escolas, seguindo ou não os direcionamentos de cada uma. Afinal, é importante ter conhecimento do que se deve fazer, mas também do que não se deve fazer.


Estudando outros jogos

Além de conhecer seu público e o tipo do seu jogo, você também precisa entender seus “concorrentes”. Aí começa uma das partes mais divertidas de todo o processo de pesquisa! Aqui é válido qualquer tipo de estudo: você pode analisar regras, utilização de componentes, formas de deixar o tema e a mecânica mais atrelados, mecânicas, sistemas de limitação, fluxos de jogo, fator “rejogabilidade”… São realmente muitas coisas que você pode analisar em outros jogos.

O importante é você analisá-los de forma crítica – e não como jogador -, e tentar extrair o máximo deles. Dentre todas as coisas que você pode analisar em jogos alheios, as que eu mais indico que você analise são as mecânicas e as diferentes formas de utilizá-las. Com isso você vai expandir, e muito, seu leque de opções na hora de criar, e não ficará preso a um simplório “ande tantas casas quanto o dado indicar e faça o efeito da casa em que seu peão parou”.


Ludologia e Narratologia

No mundo dos jogos, existe um debate muito acirrado e quente sobre qual o pilar principal na criação de um jogo: a Narratologia ou a Ludologia.

A Narratologia defende que os jogos são primariamente narrativos, mesmo quando abstratos. A Ludologia defende que os jogos se diferenciam de outras mídias por seu teor lúdico. Na minha visão, ambos deveriam andar juntos, e esse debate poderia funcionar de forma bem mais amigável.

De toda forma, saiba de uma coisa: seu jogo vai precisar desses 2 pilares, então estude-os com bastante carinho, o Google taí pra isso.


Inteligência Artificial

A inteligência artificial não é uma necessidade nos jogos, principalmente os de tabuleiro, que são gerenciados pelos próprios jogadores. Mesmo assim, incluir inteligência artificial em seu jogo pode ser um ponto bem alto. Ela comumente é utilizada em jogos com modo solo, para simular ações de jogadores e/ou inimigos. Mas também pode ser utilizada de forma bem mais sutil para mecanismos de gerenciamento, mesmo em jogos com vários jogadores.

Caso você queira se aventurar um pouquinho nisso, aconselho estudar “Minimax”, “algoritmos de busca” e “lógica fuzzy”. Se acabar não utilizando isso em jogos, pelo menos vai ter ser divertido aprender essas coisas.


Conhecimentos Correlatos

Além de estudar a teoria dos jogos, é muito importante saber relacionar seus conhecimentos de outras áreas para a criação de um jogo. Com isso você garante um leque maior de conhecimentos, técnicas e ideias “fora da caixa” e consegue criar coisas inovadoras, funcionais e com mais facilidade.

Eu, por exemplo, extraí muito do meu conhecimento de board game design do que aprendi com jogos digitais. Já o Sérgio Halaban, autor de Quartz, Sheriff of Nottingham, Matryoshka e outros tantos jogos, é formado em Design de Produtos, e certamente seu conhecimento na área o torna muito mais preparado para criar jogos bons para o mercado, uma vez que ele tem uma visão de “produto” para a sua obra desde o início.

O que eu quero dizer, então, é que você não precisa somente saber de jogos para fazer jogos. Busque inspiração e conhecimento do seu dia a dia, das suas competências, da sua área de atuação. Toda forma de conhecimento é válida!


Recomendações de Leitura

Eu sei, já indiquei conteúdo demais por aqui! Mas só pra finalizar, vou indicar mais algumas leituras. Essas são para o caso de você querer se aprofundar bastante no assunto mesmo, e caso também goste bastante de ler!

A primeira indicação é um artigo que escrevi junto com o Kevin Talarico (também da Potato Cat), falando um pouco sobre as diferenças nas mecânicas de jogos digitais e de tabuleiro. Faça a leitura do artigo “Aplicações de Mecânicas de Jogos para Diferentes Plataformas” clicando aqui.

As outras indicações são dois livros: Rules of Play e Challenges for Game Designers. Eles abordam diversos temas e propõem atividades bem variadas. Em alguns momentos, você vai se deparar com questões bem interessantes para o design de jogos de mesa. Tente aproveitar melhor esses pontos, mas lembre-se: sempre é possível abstrair os conteúdos do digital para o analógico.


E depois de tanto conteúdo, acho que já está bom, né? Bom, na verdade não. Minha última dica de hoje é que você nunca pare de estudar. Quanto mais você aprender, melhor. Mas é claro, para um começo isso está mais do que bom. Sério!

Então volto em breve pra falar sobre o que você realmente tá esperando: a prática! Na próxima postagem, irei abordar questões mais práticas e darei algumas sugestões de como começar a compor seu jogo a partir de alguns pilares e etapas que têm funcionado bastante comigo.

6 Comments

  1. Henrique
    18 de maio de 2018

    Olá! Parabéns ao blog e muito obrigado à Samanta por compartilhar suas experiências! Gostaria de saber mais sobre a formação acadêmica na área. Já existem faculdades de design de jogos (especificamente de tabuleiro) no Brasil? Recomendaria algum outro curso?

    Responder
    1. Roberto
      18 de maio de 2018

      Opa Henrique, obrigado pelo comentário e elogios.
      Acredito que ainda não exista um curso superior focado especificamente em jogos de tabuleiro. Vou avisar para Samanta do seu comentário para ver se ela pode lhe dar uma resposta mais ampla…

      Responder
    2. Samanta Talarico
      18 de maio de 2018

      Oi Henrique! Eu quem agradeço pelo tempo dedicado à leitura!
      Bom, existem vários cursos para a criação e desenvolvimento de jogos, cada uma focando em processos diferentes desse ramo, inclusive. Mas não conheço nenhuma faculdade de jogos de tabuleiro, infelizmente.

      Como sou de SP, minhas referências são mais por aqui:
      Eu me formei em Jogos Digitais pela Fatec São Caetano. Lá o foco é a programação e o desenvolvimento do jogo, deixando a criação em segundo plano. Lá estudei desde conceitos de tecnologia, redes e tipos de hardware, até estruturas para roteiro, animação e som nos jogos. Mas o foco mesmo é a programação, pois em cada semestre você aprende uma linguagem diferente.

      Conheço também o curso da Anhembi Morumbi, que dizem ser muito bom. Lá o foco é mais para os game designers, artistas e designers. Acredito, inclusive, que nesse curso que exista um estudo um pouco melhor em jogos de mesa, mas não posso confirmar.

      De toda forma, existem vários cursos de jogos no Brasil, em outros estados e até mesmo à distância. E até aqueles que focam em jogos digitais podem ser bem úteis pra quem quer trabalhar nessa área.

      Responder
  2. Lair Amaro dos
    10 de junho de 2018

    Roberto e Samanta, obrigado pela postagem.

    Sou professor de História e só recentemente comecei a adaptar jogos de cartas e tabuleiros para usa-los como ferramenta auxiliar de ensino.

    Acontece que sou da geração anterior ao surgimento de videogames e RPG. Na minha imaginação e lembranças da infância jogos de tabuleiro seguem, o que a Samanta chamou, “um simplório ‘ande tantas casas quanto o dado indicar e faça o efeito da casa em que seu peão parou'”.

    Qual a sua sugestão para eu não criar jogos educativos simplórios e, por conseguinte, desinteressantes para meus alunos?

    Responder
    1. Roberto
      10 de junho de 2018

      Eu diria que seria construir uma biblioteca de bons jogos na sua bagagem pessoal. Isto é, procure jogos modernos para a faixa etária que você ensina (criança, adolescentes, etc) e jogue-os.
      Assim, você vai aprender de maneira lúdica e prática os novos conceitos e mecânicas aplicados nos jogos mais recentes, que não são viciados nessa caminhada simples que é a mecânica Rolar e Mover.
      Com essa base de conhecimento, ficará mais fácil você elaborar os seus próprios jogos de uma maneira que engaje melhor os alunos.

      Vou avisar para a Samanta que você comentou, assim ela também pode lhe ajudar.

      Responder
    2. Samanta Talarico
      19 de junho de 2018

      Oi Lair!
      Muito legal sua iniciativa em fazer jogos para o ensino. Principalmente porque eu gosto muito de História!

      Bom, a dica do Roberto foi muito boa. Então acatá-la é uma ótima opção.

      Eu complementaria dizendo 2 coisas:

      A primeira é que “rolar e mover” não é necessariamente simplório, mas não podemos nos limitar a somente isso.
      Existem muitas outras mecânicas que podem ser soluções ainda mais práticas, temáticas e adequadas para os jogos que você quer criar.
      Eu aconselho ler um pouquinho sobre isso no site Ludopedia. Lá tem uma página só para as mecânicas, na qual você consegue entender melhor cada uma delas.
      O link é esse: https://ludopedia.com.br/mecanicas

      A segunda é que “rolar e mover”, às vezes, é uma boa solução. E caso não seja, outras mecânicas simples e semelhantes possam ser. Isso porque criar jogos para pessoas que não estão acostumadas a jogar é bem diferente de criar jogos para jogadores.
      Como seu objetivo não é de fato entreter (embora o entretenimento e a imersão sejam importantes para a fixação do aprendizado), acredito que jogos mais simples sejam mais adequados para sua situação. Então, ainda que busque novas mecânicas, não tenha medo de continuar sendo simples.
      Uma coisa legal é ir progredindo com seus próprios alunos na criação desses jogos, vendo como eles reagem às opções que você entrega.

      No mais, desejo sucesso em suas aulas!

      Responder

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